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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
PROJETOS DE SAÚDE MENTAL: CONSTRUÇÃO COLETIVA
Uma rede de atenção à Saúde Mental compõe-se de ações e de serviços diversos. Contudo, ela somente funciona de fato como rede quando é criada é ordenada a partir de um Projeto de Saúde Mental.
Para atender às diretrizes da Reforma Psiquiátrica, tais como definidas nas III Conferências Estadual e Nacional de Saúde Mental, esse Projeto deve reorientar o modelo de assistência, através de ações e de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, que possibilitem sua superação.
Para concretizar-se, esse Projeto pode necessitar dos mais variados dispositivos. Alguns deles, descritos neste capítulo, pertencem de forma mais estrita à área da Saúde: consistem nas atividades específicas de Saúde Mental que se executam em serviços de Saúde, como unidades básicas ou hospitais gerais, e também nos serviços de Saúde destinados especificamente aos portadores de sofrimento mental, como os CAPS. Outros, abordados no capítulo seguinte, vão além da esfera da Saúde: são os Centros de Convivência, os Grupos de Produção, as Moradias, as formas diversas de mobilização e de controle social.
Contudo, devemos lembrar: dispor de todos esses recursos não basta para assegurar um Projeto de Saúde Mental. Um Projeto não consiste simplesmente na administração dos serviços existentes, ou na criação de novos serviços. Trata-se de uma construção coletiva, tendo como parceiros o poder público, os trabalhadores e as instâncias de controle social. Uma pergunta guia esta construção: o que é preciso fazer para que os portadores de sofrimento mental deste município, ou desta região, sejam tratados como cidadãos?
O que é preciso fazer depende, é claro, das singularidades de cada município ou região. Se um mesmo princípio – o da cidadania – vale para todos, as estratégias são diferentes, assim como são diferentes as necessidades.
Assim, uma cidade muito pequena não necessita de um CAPS, mas deve haver um CAPS de referência em sua micro-região. Uma cidade de médio porte pode não precisar de um CAPS 24 horas, mas deve ter sua estratégia para atendimentos de urgência noturnos, como, leitos em hospital geral. Uma região onde há grande concentração de leitos psiquiátricos necessitará de um grande investimento em moradias protegidas – que são muitas vezes desnecessárias onde não há hospitais. Um ambulatório de Saúde Mental pode caminhar para tornar-se um CAPS. Compete a cada local uma forma própria de criar e de articular seus serviços, conforme as necessidades reais que se apresentam.
Um outro fator a ser levado em conta é o investimento do gestor diante dessas necessidades: um município pode necessitar urgentemente de um ou mais CAPS, sem que a administração local se decida a construí-lo. Nesdes casos, compete à equipe utilizar a
ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
melhor maneira possível os recursos existentes – enquanto se alia às instâncias de controle social para obter aqueles que faltam.
Contudo, a potência um Projeto de Saúde Mental depende, sobretudo da capacidade de estabelecer a estratégia de suas prioridades. Quais serviços devem ser criados primeiro? Dos serviços existentes, quais devem ter sua função re-adaptada, quais devem ser gradativamente desmontados? O que é mais importante e mais viável, nesse momento e nessa conjuntura: investir no bom funcionamento da unidade básica, ou criar um CAPS? Mais adiante, quais devem ser os próximos passos?
Afinal, um Projeto de Saúde Mental não nasce pronto, nem se implanta inteiro de uma só vez: seu traçado, sua implantação, seu estilo, são sempre singulares, conforme as singularidades locais.
De qualquer forma, será um Projeto de Saúde Mental coerente e eficaz, sempre e quando seus diferentes serviços se articulam uns aos outros, visando a um objetivo comum: prescindir do hospital psiquiátrico e sua lógica, assegurando a todos os usuários o acesso à rede de cuidados, e construindo com eles condições para sua vida livre, autônoma e participativa no cenário da cidade.
A ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL NAS UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE
Inversão das prioridades da Saúde Mental: um problema a enfrentar
Inicialmente, examinemos o perfil da clientela que se destina à Saúde Mental na grande maioria das unidades básicas de Saúde.
Ao discutir o acolhimento, no capítulo anterior, vimos que freqüentemente usuários “problemáticos” são encaminhados para os profissionais de Saúde Mental da unidade, que supostamente saberiam o que fazer com eles.
Além disso, há uma outra clientela que chega maciçamente a estas unidades: os usuários habituais de benzodiazepínicos e antidepressivos. São pessoas – mais comumente mulheres – que, ou por serem mais frágeis, ou por terem tido uma história de vida complicada, ou por estarem atravessando um momento difícil, numa dada ocasião receberam, de forma equivocada, um diagnóstico psiquiátrico e a prescrição de um medicamento. A partir daí, passam a identificar-se com esse rótulo – dizendo, por exemplo: “Meu problema é depressão” – e a usar, muitas vezes por toda a sua vida, psicofármacos com os quais se acostumam tanto orgânica como psiquicamente. Entre essas pessoas, algumas são neuróticas graves e/ou atravessam momentos de crise, necessitando, pois, de assistência especializada. Contudo, não é este o caso da grande maioria delas – e, ainda assim, ocupam grande parte das agendas, sobretudo a dos psiquiatras. 55 A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Encontramos, ainda, principalmente na Psicologia, vários usuários encaminhados, muitas vezes sem demanda própria, a uma psicoterapia interminável, cujas razões e objetivos não são claros nem para eles nem para os profissionais que os acompanham. Dentre eles, destacam-se as crianças e os adolescentes com problemas de aprendizagem ou de comportamento, que muitas escolas costumam encaminhar.
Ora, enquanto a equipe de Saúde Mental ocupa-se predominantemente desses casos, uma série de outros deixa de receber atendimento adequado. Os portadores de sofrimento mental grave, ou psicóticos, não costumam encontrar espaço e tempo nas unidades básicas: quando atendidos, geralmente são pacientes já estáveis, que ali recebem apenas uma renovação da receita visando “manter o quadro”.
Por conseguinte, é preciso operar uma inversão: os casos mais graves, inclusive os agudos, devem ser priorizados em qualquer serviço de Saúde – inclusive na unidade básica.
Ao mesmo tempo em que se assegura essa prioridade aos casos de maior gravidade, a unidade básica de Saúde deve reconsiderar a forma de abordagem dada à sua clientela habitual de mulheres infelizes e meninos levados. Não se trata de menosprezar os problemas dessas pessoas, nem de virar-lhes as costas – e sim de procurar com elas outras saídas e alternativas, sem mascarar os problemas de sua vida tratando-os como problemas de Saúde Mental.
Esse não é um movimento fácil de fazer. Contudo, sua realização é indispensável, se queremos assegurar à unidade básica um papel efetivo na rede de atenção aos portadores de sofrimento mental.
A parceria Saúde Mental – Saúde da Família
Esta é uma parceria necessária, desejável e possível: afinal, a lógica dos projetos de Saúde Mental inspirados na Reforma Psiquiátrica tem grandes afinidades com aquela dos Programas de Saúde de Família, entendidos como estratégia de implantação do SUS.
As equipes do PSF, por sua proposta mesma de trabalho, costumam ter com sua clientela uma relação muito diferente daquela que se estabelece nas práticas mais tradicionais de Saúde. Conhecem seus pacientes, conversam com eles, entram em contato direto ou indireto não só com seus sintomas e doenças, mas com os mais diferentes aspectos de suas vidas. Esta lógica de trabalho contribui para ajudá-los a atender adequadamente o tipo de clientela que vem ocupando de forma indevida as agendas dos profissionais de Saúde Mental.
Escutar o paciente cuja queixa traduz essencialmente a demanda de ajuda para um problema emocional; acompanhá-lo, procurando pensar com ele as razões desse problema, e formas possíveis de enfrentá-lo; evitar tanto quanto possível o recurso aos psicofármacos, e, quando necessário, usá-los de forma criteriosa; não forçar o paciente a deixar de um dia para o outro medicamento que sempre usou, mas ponderar com ele os riscos e as desvantagens desse uso; não repetir estereotipadamente condutas e receitas: este é um acompanhamento que as equipes do PSF sabem e podem conduzir. 56 ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Evidentemente, essas equipes podem alegar diversos impedimentos para assumir tais funções. Contudo, devemos distinguir dois tipos de objeções.
O primeiro tipo é aquele que nasce de uma recusa a priori da equipe em atender estes pacientes. O segundo tipo tem a ver com suas dificuldades concretas em lidar com eles.
A recusa, embora compreensível, não se justifica. Os profissionais de Saúde sentem-se irritados diante da demanda dessa clientela, que não melhora nunca, queixa-se de tudo, desafiando os seus saberes, e provocando uma sensação de impotência. Entretanto, deve-se levar em conta a responsabilidade dos próprios agentes de Saúde na gênese desta demanda. A esse respeito, citamos o jornal Sirimim9: “Afinal, medicalizando” e “psicologizando” os mais diversos aspectos da vida, os gestores e técnicos de Saúde já fizeram à população muitas promessas irrealizáveis; não há um porquê de ficarmos escandalizados se hoje nos cobram uma performance à altura da imagem de onipotência divulgada”.
Assim, quando um paciente nos vem pedir pela milésima vez uma receita de diazepam, não custa lembrar que foram profissionais de Saúde quem lhe prescreveu esses remédios pela primeira vez, e continuaram a fazê-lo automaticamente por anos a fio.
Quanto às dificuldades: alega-se, sobretudo, a questão do despreparo para atender esses pacientes. Ora, tal dificuldade se relaciona a outra, aliás, mais grave: na formação dos profissionais de Saúde, o despreparo para considerar a dimensão subjetiva de todos os pacientes – sejam eles doentes “de verdade” ou não. A este respeito, a própria prática do PSF, em muitos locais, já conseguiu avançar para além dos saberes estritamente técnicos que geralmente se aprendem nas faculdades!
De qualquer forma, esse despreparo é uma dificuldade real a ser solucionada. Cursos de capacitação em Saúde Mental, referências bibliográficas adequadas, esta Linha-Guia – são recursos necessários para tal.
Ainda: embora seja imprescindível que as equipes do PSF adquiram noções básicas de Saúde Mental, existe um nível mais complexo de saberes desta área que seus profissionais não são obrigados a conhecer. Portanto, a disponibilidade da equipe de Saúde Mental é essencial: cabe-lhe ajudar a abordagem destas questões, seja através de reuniões e de debates periódicos, seja no cotidiano do serviço – discutindo alguns casos, avaliando outros, recebendo aqueles que se agravam ou se complicam.
Contudo, os problemas suscitados por esta clientela não se resolvem simplesmente transferindo seu atendimento da Saúde Mental para o PSF. Quando se faz apenas isto, o que acontece muito brevemente é que as agendas do PSF tornam-se tão tomadas por estes usuários quanto antes o estavam as agendas da Saúde Mental.
Logo, é preciso um duplo movimento. Por um lado, não se pode fechar as portas do centro de saúde para essa clientela; por outro, há que encontrar, com eles, espaços mais interessantes, fora e além do centro de saúde.
Os próprios trabalhadores da unidade básica – os do PSF ao lado dos da Saúde Mental – podem desenvolver certas iniciativas: eventos culturais, atividades esportivas ou de lazer, festas, encontros – mostrando a esses usuários que podemos estar próximos a eles de uma outra maneira, sem atrelar nossa presença a consultas ou remédios.
Este primeiro passo leva a outros, intersetoriais: parcerias com trabalhadores e serviços do Desenvolvimento Social, da Educação, dos Direitos Humanos, etc. Assim, pode-se criar possibilidades de trânsito e de produção para estas pessoas – que não têm encontrado outra maneira de pedir ajuda para seus problemas a não ser revestindo seu apelo de uma roupagem médico-psicológica, endereçando-o eternamente aos serviços de Saúde.
A atuação da equipe de Saúde Mental nas unidades básicas
Muitas unidades básicas não possuem uma equipe de Saúde Mental – e nem mesmo seria desejável que a possuíssem! A lotação ou não da equipe de Saúde Mental numa unidade básica depende de aspectos epidemiológicos, demográficos, e outros, que devem ser levados em conta na organização do Projeto de Saúde Mental local.
Uma vez lotada numa determinada unidade, a equipe de Saúde Mental deve atender também os pacientes de outras unidades próximas, que não contam com profissionais da área.
As equipes do PSF devem assumir o acompanhamento daqueles portadores de sofrimento mental em que o grau de complexidade do problema apresentado pelo paciente e dos recursos necessários para seu cuidado forem menores (por exemplo: neuróticos que não apresentem sintomas graves, psicóticos estabilizados, e outros).
Quando esse grau de complexidade extrapola as possibilidades dos profissionais não especializados, o caso deve ser encaminhado para a unidade básica mais próxima que disponha de profissionais de Saúde Mental.
Portanto, uma equipe de Saúde Mental necessita organizar bem a sua agenda, em contato contínuo com as diferentes unidades básicas que ela referencia. A priorização dos casos mais graves e complexos é o princípio que deve orientar essa organização.
Assim, num trabalho articulado entre as unidades básicas ligadas a uma equipe de Saúde Mental, é preciso definir bem os fluxos e os critérios de encaminhamento.
O fluxo e os critérios de encaminhamento em Saúde Mental
Um paciente em crise não requer necessariamente o encaminhamento para serviços específicos de Saúde Mental, como um CAPS: muitos deles, embora requerendo um acompanhamento mais próximo, podem perfeitamente ser acompanhados na unidade básica mais próxima que dispõe de equipe de Saúde Mental.
Num dado momento, podem impor-se medidas como a permanência-dia ou noite, a demanda de cuidados intensivos, e quaisquer outras, enfim, que extrapolem as 58 ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
possibilidades da unidade. Neste caso, o encaminhamento ao CAPS mais próximo deve ser feito, pelo período de tempo estritamente necessário, até que o paciente tenha condições de retornar à unidade básica.
Há também pacientes muito graves que não se encontram em crise: psicóticos por vezes “estáveis”, porém vivendo em situação de isolamento e apatia; outros que vivem conflitos constantes com suas famílias; outros, ainda, que tiveram sua integridade psíquica profundamente prejudicada por um longo tempo de sofrimento mental, e/ou por uma história de cronificação institucional. Estes pacientes devem ser avaliados pela Equipe de Saúde Mental. Deve-se considerar, caso a caso, como atendê-los para além do mero alívio dos sintomas pessoais ou familiares. Muitos deles estarão desejosos de falar: cumpre ouvi-los! Muitos outros perderam já este desejo: cumpre suscitá-lo!
Para a equipe de Saúde Mental é de grande importância, ainda, a prática da referência e contra-referência com os outros serviços da rede. Assim como o CAPS deve receber um paciente que não vem respondendo ao acompanhamento inicial na unidade básica, a unidade, por sua vez, deve receber com presteza os egressos dos CAPS, dedicando-lhes a atenção e o cuidado mais próximos necessários a estes pacientes.
Da mesma forma, a equipe de Saúde Mental de uma unidade básica deve acolher aqueles casos das outras unidades básicas que referencia, quando necessitam realmente de seus cuidados.
A equipe de Saúde Mental deve também estimular os colegas não especialistas, em sua unidade e naquelas que referencia, a acompanhar os portadores de sofrimento mental que eles próprios têm condições de atender. Para tanto, deve mostrar-se receptiva às dificuldades dos colegas, discutindo o caso sempre quando houver demanda para tal, e avaliando-o, quando necessário.
Também os egressos dos hospitais psiquiátricos, nas regiões em que existem, devem receber toda atenção da unidade básica – visando a tornar desnecessária uma nova internação.
Uma outra articulação muito importante da unidade básica é aquela que se faz com os Centros de Convivência e serviços afins. A freqüência destes serviços, de forma simultânea ao acompanhamento na Unidade, é uma ajuda valiosa no tratamento do paciente grave, possibilitando a reconstrução de laços e o convívio social, para a qual o atendimento individual nem sempre basta.
É preciso desmontar o velho costume de enviar os psicóticos apenas ou principalmente para os psiquiatras. Todos os pacientes, neuróticos ou psicóticos, necessitam de uma escuta – e todo profissional de Saúde Mental deve ser capaz de oferecê-la, seja qual for o diagnóstico em questão. 59 A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
É importante lembrar que o portador de sofrimento mental pode participar dos grupos de hipertensos, diabéticos, de mulheres, etc, realizados na unidade básica.
Ao realizar essa proposta, pode-se verificar que a presença dos portadores de sofrimento mental grave, longe de atemorizar os outros pacientes ou de perturbar o funcionamento do serviço, contribui para criar na unidade básica um trabalho mais ágil e menos rotineiro, lidando tranqüilamente com as diferenças e os imprevistos.
OS CAPS ou CERSAMS
Para não confundir o leitor, inicialmente, esclarecemos uma questão de terminologia. Existem serviços de Saúde Mental voltado para o tratamento intensivo ou semi-intensivo de portadores de sofrimento mental. Nas portarias do Ministério da Saúde, esses serviços recebem o nome de CAPS, ou Centros de Atenção Psicossocial. Contudo, em diferentes locais do país, os CAPS recebem nomes diferentes, em vários municípios mineiros, por exemplo, são chamados de CERSAMs, ou Centros de Referência em Saúde Mental.10
Portanto, podemos utilizar os termos como sinônimos: CERSAMs ou CAPS, tanto faz. O que varia, como veremos mais adiante, é a função que adquirem conforme o Projeto de Saúde Mental do qual fazem parte.
As propostas e o funcionamento dos CAPS
A portaria GM 336/2002 nos traz alguns critérios mínimos para definir um CAPS. Seu tempo de funcionamento mínimo é de 8 às 18 horas, em dois turnos, durante os 5 dias úteis da semana (os CAPS I e os CAPS II); contudo, há aqueles que funcionam 24 horas, de segunda a segunda (os CAPS III). Realizam prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos severos e persistentes em sua área territorial. Funcionam em área física e independente de qualquer estrutura hospitalar, com equipes interdisciplinares próprias. Oferecem, dentre outros recursos terapêuticos: atendimentos individuais e em grupo, atendimento à família; atividades de suporte social e inserção comunitária; oficinas terapêuticas; visitas domiciliares.
A necessidade de possuir um CAPS, assim o número de CERSAMs necessários, depende do porte do município. Municípios pequenos não precisam necessariamente tê-lo, desde que possam contar com um serviço deste tipo num município de referência da sua região. Podemos estabelecer como adequada uma média de um CAPS para cada 100.000 habitantes; contudo, este é um fator bastante variável, havendo municípios cujos CAPS atendem a territórios bem mais populosos.
Contudo, indo um pouco além destas definições, apresentaremos a lógica e a dinâmica de funcionamento que, em nosso entender, compete a um CAPS.
Como vimos, embora os pacientes mais graves, mesmo em crise, possam ser atendidos na unidade básica, existem casos e situações em que isto não é possível. Nos períodos de crises mais intensas, com maior desorganização psíquica, acentuada inquietude psicomotora, insônia severa, torna-se difícil a permanência contínua do paciente em sua casa: os conflitos domésticos tendem a agravar-se, perturbando muito a relação entre pacientes, familiares e vizinhos.
Assim, serviços como os CAPS possibilitam tanto uma mediação desses conflitos, quanto um acompanhamento próximo e intensivo do paciente em crise – acolhendo-o em regime de permanência-dia, e, quando necessário, permanência-noite.
Sendo serviços territorializados, os CAPS recebem pacientes de sua área, encaminhados por outros serviços, ou por demanda espontânea. O profissional da equipe do CAPS deve avaliar se a admissão neste serviço é realmente a melhor opção para aquele paciente; caso contrário, o profissional deve propor outra alternativa.
A admissão de um paciente do CAPS deve sempre ser negociada com ele próprio: embora possam ocorrer admissões involuntárias, na grande maioria das vezes é possível evitar esse tipo de medida.
Uma vez admitido no serviço, o paciente, via de regra, vincula-se a um determinado profissional da equipe, que se torna seu técnico de referência.
Não há nenhuma regra a priori que determine o tempo da permanência: este é ditado pelas particularidades de cada caso, a partir de um acordo feito entre o técnico de referência, o paciente e seus familiares Alguns podem passar ali apenas uma parte do dia, outros podem passar o dia e a noite, outros o dia inteiro, outros três vezes por semana, e assim por diante. Esae acordo vai sendo revisto ao longo do tratamento, podendo a freqüência do paciente ao serviço aumentar ou diminuir, conforme o caso.
O que se faz no CAPS?
Se um paciente necessita afastar-se ao menos temporariamente de sua própria casa, isto só faz sentido se o recebemos num local onde receba cuidados constantes e respeitosos. Esses cuidados são variados: o atendimento individual diário com seu técnico de referência, com o qual possa falar e procurar entender o que se passa com ele; a ajuda para a sua higiene e cuidados com o próprio corpo, geralmente prejudicados pela crise; a participação em atividades coletivas, como oficinas, reuniões, assembléias, passeios; o atendimento à família, que deve fazer-se presente durante todo o tratamento; a prescrição adequada da medicação; a disponibilidade dos trabalhadores do serviço. 61 A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Portanto, embora devendo atender aquela clientela que geralmente se destinava aos hospitais psiquiátricos, espera-se que os CAPS atuem de forma completamente diferente daquelas instituições.
O lugar do CAPS no Projeto de Saúde Mental: serviço substitutivo x serviço complementar
Os mais de 600 CAPS hoje credenciados no país, segundo os critérios da portaria já citada, são com certeza, em sua grande maioria, lugares onde acontecem interessantes experiências no sentido do convívio e de encontro com os portadores de sofrimento grave.
Engana-se quem diz que certos CAPS se assemelham a hospitais psiquiátricos: mesmo aqueles que não funcionam tão bem quanto deveriam oferecem aos usuários um grau de contratualidade e poder de decisão muito maior do que o melhor dos hospitais.
Isto não quer dizer, porém, que todos eles sigam a lógica e a dinâmica descrita acima. Muitos não se encontram integrados a um Projeto de Saúde Mental claro e bem estabelecido, o que faz oscilar a sua função.
Há duas funções possíveis para um CAPS, que dependem do lugar que ocupa no Projeto de Saúde Mental. Uma delas consiste em atuar como um espaço intermediário entre o nível básico e o hospital psiquiátrico, atendendo os casos de relativa gravidade, porém preferindo encaminhar os mais difíceis e graves: nesse caso, o CAPS funciona como um serviço complementar ao hospital. A outra é quando integra um conjunto de ações e serviços que dispensam esta retaguarda, ou seja: quando se integra numa rede de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico.
Parece-nos, ainda, que a lógica de funcionamento de um CAPS varia conforme assuma esta ou aquela função no Projeto de Saúde Mental: o CAPS tem mais dificuldade em romper com a lógica do hospital psiquiátrico quando se coloca como complementar e não como substitutivo a ele. Tentaremos enumerar e desenvolver alguns aspectos em que isto se manifesta.
O CAPS no acolhimento das crises graves
Muitas vezes, os CAPS acabam por encaminhar casos mais graves ou difíceis ao hospital psiquiátrico.
Algumas vezes, essa posição é imposta pela inadequação da rede municipal de Saúde Mental: assim, um número insuficiente de CAPS, ou um CAPS insuficientemente equipado, pode forçar o recurso à internação.
Mas, noutros casos, a questão não é a falta de alternativas em si: é que não se vê necessidade de construí-las, parecendo mais adequado ou mais cômodo funcionar como serviço complementar. 62 ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Assim, na primeira possibilidade, um CAPS pode vir a recorrer ao hospital, por não dispor de outra alternativa no momento – por exemplo, porque não funciona ainda durante 24 horas, ou não conta com leitos para pernoite em hospital geral. Contudo, estes encaminhamentos só se fazem em último caso, sabendo a equipe que esta não é a melhor opção para o paciente.
Na segunda possibilidade, os encaminhamentos são feitos com maior freqüência e facilidade – de forma que, ao longo do tempo, a equipe tende a enviar para o hospital aqueles casos que suscitam intolerância, dificuldade ou resistência.
Inserido num Projeto de Saúde Mental verdadeiramente eficaz, um CAPS deve acolher de forma decidida os casos de crise que lhe chegam, mantendo-os consigo enquanto preciso for.
Para isto, deve procurar outras saídas – ampliação do seu funcionamento para 24 horas, leitos para pernoite em hospital geral, etc – que permitam à equipe que já acompanha o paciente desde o início da crise estar a seu lado até o momento da melhora.
O CAPS como espaço terapêutico
Vimos em capítulos anteriores os repetidos insucessos das tentativas de fazer dos hospitais psiquiátricos verdadeiros espaços terapêuticos. Por que se acredita, então, na possibilidade de que os CAPS possam atuar como tal?
Como já foi dito, os CAPS são serviços abertos – tanto para a entrada e a saída dos usuários, quanto para sua ligação com a cidade.
Portanto, vejamos alguns pontos imprescindíveis para que o espaço do CAPS se estruture segundo uma lógica antimanicomial.
O empenho para evitar o uso da força na relação com os usuários é essencial. Isto começa pela admissão e pela freqüência do serviço, para as quais se deve sempre buscar o consentimento do paciente. Contudo, inclui também vários outros aspectos. Assim, ainda que um episódio de agitação intensa torne necessário medicar extraordinariamente o paciente, a medicação deve sempre ser precedida, acompanhada e seguida pela conversa e pela argumentação.
Da mesma forma, a contenção física e outras medidas de imposição utilizadas rotineiramente, sem esgotar outros recursos possíveis, é um sinal seguro de que o trabalho não vai bem.
Para que o uso da força não se imponha, é preciso criar um clima acolhedor e ativo no serviço. Evidentemente, os CAPS substitutivos ao hospital são serviços de ritmo acelerado, por vezes até mesmo tenso. Contudo, ainda assim, o ambiente costuma ser agradável e hospitaleiro: a grande maioria dos pacientes aprecia a permanência no serviço e vincula-se a ele. 63 A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Demonstra-se assim a possibilidade do convívio direto e próximo com pessoas em crise, e entre elas: nas situações de impasse, a segurança de todos e de cada um não se garante pelo abuso da força, mas pelo poder de mediação da presença e da palavra.
A oferta constante de atividades interessantes e participativas, que atendam a gostos diferentes e respeitem as escolhas individuais, é indispensável: o CAPS deve romper tanto com o ócio forçado quanto com o trabalho também forçado que caracterizam o hospital psiquiátrico.
É igualmente decisivo o tipo de relações que se estabelecem entre os pacientes e os profissionais. Não pode haver barreira física ou hierárquica que dificulte o acesso do paciente a qualquer profissional da equipe. Não há pedido que não possa ser ouvido, nem crítica que não deva ser considerada. Quanto mais uma equipe estabelece com os pacientes, relações de solidariedade e confiança mútua, tanto mais o serviço opera com tranqüilidade e competência.
Também importam, e muito, as relações que se estabelecem entre os profissionais, como foi visto no item sobre trabalho em equipe. As equipes centradas na ação e na presença do psiquiatra tendem a reeditar o modelo manicomial: quando se solicita e se depende muito desse profissional, repete-se o modelo médico-centrado que caracteriza o hospital psiquiátrico.
Ainda, a participação dos usuários nas decisões que dizem respeito ao funcionamento do serviço é essencial. As reuniões gerais e as assembléias são atividades que lhes permitem apontar problemas e procurar soluções: dessa forma, os usuários responsabilizam-se também pelo zelo com o espaço do CAPS.
O CAPS como serviço aberto
Os CAPS devem ser serviços abertos, em todos os sentidos: tanto pela ausência de muros e de grades, quanto pela ligação constante com o espaço social.
Também não necessitam de recursos e equipamentos médicos de maior monta: os CAPS não são pequenos hospitais. Afinal, o tipo de cuidados em Saúde Mental dispensa as aparelhagens e tecnologias hospitalares: opera, sobretudo pela acolhida que oferta e pelo laço que estabelece com o usuário.
Quando esse laço se fortalece e se multiplica, ampliando-se para além dos limites dos CAPS, o serviço mantém-se aberto; quando permanece restrito ao interior da instituição, tende a fechar-se.
O tratamento oferecido pelo CAPS não se faz o tempo todo dentro dele: uma saída para ir à padaria, um passeio no parque, uma ida à reunião da sua associação, são de grande importância para os usuários. O mesmo vale para os técnicos: tentar 64 ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
buscar em sua casa o paciente grave que não quis vir; acompanhar um grupo de usuários numa excursão ou num passeio; participar de reuniões com colegas de outros serviços, e assim por diante. Essa troca constante entre o serviço e a cidade, esse entrelace entre seus espaços, é certamente uma marca dos CAPS.
O CAPS deve ser um local de passagem – ou seja, a permanência-dia ou noite no serviço é uma etapa na vida do paciente, e não um meio de viver. Outros serviços e atividades podem atendê-lo melhor numa outra etapa: a unidade básica, o centro de convivência, um grupo de produção, uma associação de usuários.
Sobretudo, o tratamento no próprio CAPS visa a não manter o portador de sofrimento mental apenas na condição de usuário de serviços de Saúde Mental, mas abrir perspectivas em sua vida: o namoro, as amizades, o estudo, o trabalho, o lazer. Portanto, as coisas não vão bem, quando a maioria dos usuários é mantida por muito tempo dentro dos seus limites.
Isto não quer dizer, como pensam muitos, que se deva “dar alta” imediatamente após passada a crise: não se trata de aliviar os sintomas do paciente para dispensá-lo a seguir. O usuário pode freqüentar o CAPS durante todo o tempo que se fizer necessário: não podemos mandar embora hóspedes que convidamos a entrar.
Contudo, cabe à equipe despertar os usuários para o desejo de partir – não porque queremos livrar-nos deles, mas porque existem no mundo horizontes mais amplos. Assim, apenas quando a saída do usuário respeita o seu ritmo e a sua decisão, o CAPS opera realmente como lugar de passagem.
OUTROS SERVIÇOS E RECURSOS
Ambulatórios de Saúde Mental
Durante muitas décadas, a única alternativa à internação psiquiátrica consistia no tratamento em ambulatórios especializados de Saúde Mental. Contudo, de maneira geral, essa alternativa não teve sucesso.
Nos municípios de maior porte, sobretudo, criaram-se “mega-ambulatórios” onde atuavam um grande número de profissionais da Saúde Mental, sobretudo psiquiatras.
A inexistência de trabalho em equipe, o atendimento automatizado e essencialmente medicamentoso, baseado no procedimento da consulta, caracterizava esses serviços. Suas agendas jamais priorizaram os portadores de sofrimento mental grave. Pelo contrário, “psiquiatrizando” pessoas com problemas emocionais mais leves foram em grande parte os responsáveis pela criação da clientela de usuários crônicos de benzodiazepínicos e antidepressivos, descrita quando se tratou das unidades básicas de Saúde.11
11 Vide 3.2 Atenção em Saúde Mental nas unidades básicas de Saúde.65 A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Assim, os ambulatórios de Saúde Mental já não são serviços preconizados pela Reforma Psiquiátrica. Isto não retira a importância do atendimento ambulatorial, ou seja, do atendimento diário, semanal ou mensal dos portadores de Saúde Mental que não requerem uma assistência tipo permanência-dia ou noite. O que se modifica é a lógica desSe atendimento, assim como o espaço de sua realização: deve fazer-se preferencialmente na unidade básica de saúde, seja pela equipe do PSF, nos casos mais simples, seja pela equipe de Saúde Mental, nos mais complexos.
Por vezes, é importante, também, que esse tipo de atendimento se faça no CAPS – por exemplo, no caso de um paciente muito ligado ao CAPS, mas que já não necessita permanecer ali, pode-se atendê-lo uma vez por semana naquele serviço, até que chegue o momento adequado de seu encaminhamento para a unidade básica.
Contudo, embora já não vigore a tendência de criar ambulatórios especializados em Saúde Mental, esses serviços existem em muitos municípios. Colocam-se, pois, as perguntas: primeiro, é possível utiliza-los de acordo com as propostas da Reforma Psiquiátrica? E, em caso afirmativo, como inseri-los nessa perspectiva?
No caso dos “mega-ambulatórios” já descritos, a prática já se cronificou há muito, sendo serviços pouco flexíveis para uma verdadeira reestruturação. Nesses casos, é melhor caminhar progressivamente para extingui-los, substituindo-os pelos outros tipos de serviços e recursos já descritos neste capítulo.
Por outro lado, geralmente em municípios menores, costuma haver ambulatórios de Saúde Mental que podem funcionar ou mesmo já funcionam de uma outra maneira. São (ou podem tornar-se!) serviços ágeis e acolhedores, que constituem uma referência importante para a população. Nestes casos, além dos atendimentos individuais, costumam realizar oficinas, grupos e outras atividades com os usuários; acolhem casos mais graves, muitas vezes evitando a internação; atuam em equipe; têm uma relação mais viva e próxima com a cidade.
Em suma, dentro das limitações de sua estrutura física e recursos humanos, funcionam mais como um CAPS e/ou Centro de Convivência do que como um ambulatório, no sentido estrito da palavra.
Nestes casos, tais serviços devem ser estimulados a continuar funcionando sempre e mais desta maneira – caminhando no sentido de tornar-se efetivamente um CAPS, assim que a gestão do município lhes ofereça recursos para tal.
Leitos psiquiátricos em hospital geral
Em certas concepções de Reforma Psiquiátrica, esse recurso apresentou-se como a grande solução para o fechamento dos hospitais psiquiátricos. Contudo, na prática, não se revelou como tal. A mera troca de leitos em hospitais psiquiátricos por hospitais gerais mantém o recurso à internação como a alternativa para os casos graves, tornando inúteis ou ociosos os CAPS e os demais serviços da rede. 66 ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Geralmente, as enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais reproduzem o mesmo modelo arquitetônico e assistencial dos hospitais psiquiátricos: são locais fechados, isolados, cujo atendimento volta-se basicamente para a supressão dos sintomas.
Isto não quer dizer que os leitos em hospital geral são uma alternativa a ser descartada – pelo contrário, podem funcionar como uma espécie de curinga, assumindo funções diferentes conforme a organização da rede local de Saúde Mental, ajudando a assegurar a assistência 24 horas.
Veja alguns exemplos. Num município de menor porte, pode ser oneroso ou desnecessário equipar um CAPS para funcionar também à noite. Nesses casos, o CAPS pode funcionar, diariamente, de segunda a segunda, por 12 horas; aqueles casos que necessitarem também de pernoite podem ser encaminhados ao hospital geral, para permanecer ali por alguns dias, ou ainda, preferencialmente, apenas para o pernoite, continuando a passar o dia no CAPS.
Outro exemplo, numa grande cidade, ainda que os CAPS funcionem 24 horas, não faz sentido equipar todos eles com a estrutura necessária para o atendimento de certos casos mais complexos. Um CAPS 24 horas pode perfeitamente manter consigo durante a noite aqueles pacientes que já são vinculados a ele, sem necessitar da presença constante de um psiquiatra. Contudo, necessitam de contar com uma retaguarda psiquiátrica, caso se faça necessário medicar extraordinariamente um paciente. Ainda, os pacientes que procuram o serviço ao entrar em crise, muitas vezes necessitam ser medicados logo após a sua chegada. Neste caso, o estabelecimento de um serviço de retaguarda psiquiátrica num hospital geral como referência para toda a cidade é uma boa opção. O(s) psiquiatra(s) lotado(s) neste serviço recebe(m) os casos novos, que nunca foram atendidos por nenhum CAPS, encaminhando-os, no dia seguinte, para o CAPS da sua região. Podem dar orientações necessárias quanto à medicação para as equipes noturnas dos CAPS. E, ainda, podem deslocar-se pessoalmente até o CAPS que necessite deles, quando o problema não puder ser resolvido pelo telefone.
Assim, cada município pode utilizar os leitos em hospital geral conforme a estratégia mais apropriada à implantação do seu Projeto de Saúde Mental – considerando as ressalvas e os limites deste recurso.
Concluindo, um aspecto importante quanto aos hospitais gerais: eles constituem, seguramente, o melhor local de atendimento para todos aqueles pacientes em cujo quadro predomine uma patologia orgânica – seja os portadores de sofrimento mental que apresentem uma intercorrência clínica grave, seja os pacientes cujos sintomas psíquicos sejam de origem orgânica – como um alcoólatra num quadro de delirium tremens. Esse lembrete, embora óbvio, se faz necessário: a discriminação imposta aos portadores de sofrimento mental em muitos serviços de Saúde leva freqüentemente à recusa do atendimento desses pacientes, quando necessário – resultando em agravamento do quadro ou óbito.
Como qualquer outro cidadão, o portador de sofrimento mental é suscetível a adoecer gravemente – e, neste caso, também como qualquer outro cidadão, deve ser atendido no local que dispõe dos recursos adequados, ou seja, o hospital geral.67 A REDE DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
A relação com os hospitais psiquiátricos: uma coexistência provisória
Como já foi dito aqui, o Projeto de Saúde Mental que se pretende implantar em Minas busca a completa superação dos hospitais psiquiátricos: portanto, a rede de serviços é substitutiva e não complementar a eles.
Entretanto, vimos que a relação com os hospitais psiquiátricos pode dar-se, na prática, de maneira distinta. Muitos serviços recorrem a eles por uma questão de comodidade, ou pela convicção implícita de que são úteis ou necessários para certos casos. Outros, contudo, só encaminham pacientes para os hospitais psiquiátricos por não dispor ainda, em seu município ou região, dos recursos necessários (por exemplo, CAPS 24 horas ou pernoite em hospital geral) para tratar destes casos.
De qualquer forma, a Reforma Psiquiátrica mineira admite apenas uma coexistência provisória com os hospitais psiquiátricos: ou seja, deles fazemos uma utilização apenas ocasional e temporária, enquanto caminhamos para construir esses recursos que ainda nos faltam.
Esta coexistência provisória deve considerar dois aspectos.
Relação do serviço de Saúde Mental com o(s) hospital(is) mais próximo(s)
Sugerimos em todos os casos em que o encaminhamento para o hospital psiquiátrico for inevitável:
Encaminhar o paciente apenas quando todas as outras possibilidades tiverem sido esgotadas.
Ter clareza de que esse encaminhamento não é jamais a melhor opção para o paciente, e sim a única possível naquela conjuntura da rede assistencial disponível.
Ordenar o Projeto de Saúde Mental local de tal forma que seus próximos passos permitam dispensar a utilização do hospital.
Quando, enfim, o paciente for mesmo encaminhado, lembrar que ele continua sendo um paciente do nosso serviço de Saúde, e como tal deve ser tratado.
As razões de sua internação devem ser claramente explicitadas, tanto junto ao paciente, como em seu prontuário, como no contato pessoal, telefônico ou por escrito com a equipe do hospital.
Este contato não pode se limitar ao encaminhamento e alta. Visitar o paciente com freqüência, discutir continuamente seu caso com os profissionais que tratam dele no hospital, questionar medidas arbitrárias e nocivas eventualmente tomadas: como prescrição abusiva de medicamentos, eletroconvulsoterapia, e outras – estas atitudes constituem um compromisso da equipe do serviço de Saúde Mental que optou por sua internação. 68 ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL
Evidentemente, certos hospitais se mostrarão mais receptivos a este diálogo; outros sequer se disporão a ouvir. Contudo, a posição da equipe do serviço de Saúde Mental não depende da posição do hospital, nem pode submeter-se a esta: cabe-lhe sempre insistir, procurar, telefonar mais uma vez, ir pessoalmente – enfim, fazer tudo aquilo que fazemos quando realmente queremos algo que nos parece muito importante.
Relação dos gestores público com os hospitais
Compete aos gestores locais de municípios de gestão plena realizar o controle e a supervisão dos hospitais psiquiátricos existentes em seus municípios, assegurando critérios mínimos de cuidados técnicos, humanização do tratamento, adequação da área física, etc.
Os gestores locais devem participar, juntamente com a Secretaria de Estado de Saúde, do Programa Nacional de Supervisão e Avaliação Hospitalar – PNASH – versão psiquiátrica. Desde 2002, esses estabelecimentos são anualmente vistoriados, recebendo uma pontuação de acordo com uma escala definida nacionalmente, que envolve quesitos diversos como: infra-estrutura física, quadro de recursos humanos, projetos assistenciais e entrevista com os internos.
Os hospitais que receberem uma pontuação inferior a 61% têm um período de 90 dias para se adequarem aos critérios previstos; se não o fizerem, está previsto o seu descredenciamento junto ao SUS.
Todo esse processo de controle e de avaliação é de grande importância, pois, enquanto existirem, os hospitais psiquiátricos devem funcionar da maneira mais adequada possível, visando ao bem estar e a saúde daqueles que ainda precisam deles.
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Excelente artigo, auxiliou me muito entendimento que venho pesquisando ha algum tempo. Gostaria de saber de suas referências bibliográficas sobre o que escreveu e qual a sua referência pessoal para eu poder citar seu texto. Abraços.
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