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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
O ACOLHIMENTO
A noção de acolhimento
Em todos os níveis da assistência, o acolhimento, certamente, é a dimensão primeira. Do porteiro ao motorista, do auxiliar administrativo ao funcionário da limpeza, da equipe técnica, enfim de todos que participam do processo de trabalho em um serviço de Saúde, bem acolher é o primeiro e indispensável passo para um atendimento correto e bem sucedido.
O acolhimento não é simplesmente uma questão de escala em que se revezam os profissionais, nem uma maneira mais racional de preencher as agendas. Além disto, e mais do que isto, o acolhimento é a aplicação cotidiana de um princípio fundamental: seja ao pedir a informação mais corriqueira, seja ao trazer a mais fantasiosa expectativa, o usuário, quando nos traz o seu problema, é um cidadão que exerce o direito de dirigir-se a um trabalhador de um serviço público.
Nosso trabalho é acolher essa demanda – ou seja, responder!
Contudo, vejamos bem: o conteúdo da resposta pode ser sim ou não, agora ou depois, aqui ou noutro lugar, comigo ou com outra pessoa. O essencial é que a resposta, seja qual for, parta de uma postura acolhedora da nossa parte diante da demanda do usuário.
Essa postura pode descrever-se assim: “Sim, você está se dirigindo a mim, trabalhador desse serviço público, a respeito de algo que você julga ser um problema de saúde. Seu endereçamento a mim, sendo feito com educação, não me aborrece, nem me assusta: pelo contrário, merece a minha atenção. Isto não significa que eu vou automaticamente fazer o que você me pede: aquilo que uma pessoa solicita pode ser ou não justo, pode ser ou não possível, pode ser ou não necessário. Mas, com certeza, eu vou levar em conta o que você me diz, ao avaliar o que é preciso fazer: ou seja, vou atender à sua demanda de ser escutado”.
Afinal, diante do apelo que o usuário faz, há várias saídas a pensar e a discutir. O que não se discute é o direito dele de nos procurar, e o nosso compromisso de responder.
Certamente, os usuários de nossos serviços, como qualquer pessoa, às vezes pede coisas às quais não têm direito: “furar a fila”, por exemplo. Com muita freqüência, reivindicam direitos que não temos como lhes assegurar no momento: por exemplo, um medicamento que está em falta. Muitas vezes, também, trazem-nos problemas que não são estritamente problemas de saúde, mas relacionam-se às suas dificuldades pessoais e sociais.
Assim, acolher não é resolver tudo, nem concordar com qualquer coisa. Porém, diante dessa grande diversidade das demandas à saúde, não se pode meramente dizer: “Não é conosco, não é aqui, não temos tempo”.
Para cada usuário que procura um serviço, deve-se chegar a uma conclusão sobre a conduta a ser tomada: admiti-lo naquele serviço ou encaminhá-lo a outro mais adequado para ele; atendê-lo imediatamente, se o caso é grave, ou marcar um outro horário, se pode esperar. Contudo, a resposta que damos ao usuário, seja ela qual for, costuma ser bem recebida quando se baseia numa escuta atenta e numa avaliação cuidadosa do seu problema.
Concebido dessa forma, o acolhimento não pode ser atribuição exclusiva de uma determinada categoria, e sim um compromisso de todos os trabalhadores do centro de saúde. Não pode ter hora ou dia marcado, porque não é apenas uma etapa de introdução ao serviço: é pano de fundo de todo cuidado à saúde, e postura essencial ao ofício de cuidar.
O acolhimento em Saúde Mental
As considerações acima valem para todos os usuários de serviços de Saúde. Contudo, vamos examinar agora algumas particularidades do acolhimento aos portadores de sofrimento mental.
Neste caso, temos duas possibilidades: ou a pessoa procura um serviço específico de Saúde Mental, como um CAPS ou CERSAM; ou chega em serviços de Saúde, como unidades básicas ou centros de saúde, hospitais gerais, etc.
No primeiro caso, ele será recebido diretamente pela equipe de Saúde Mental, conforme os princípios descritos no item anterior. No segundo caso, surgem algumas questões que se devem discutir.
Com muita freqüência, os portadores de sofrimento mental são vistos nos serviços de Saúde como pessoas “chatas”, difíceis de lidar, e até mesmo perigosas. Nesses casos, há uma tendência para encaminhá-los imediatamente a um técnico de Saúde Mental e/ou a um serviço especializado, antes mesmo de procurar saber o que se passa. Certamente, os usuários que necessitam de tratamento por uma equipe de Saúde Mental têm todo direito a recebê-lo. Contudo, justamente para garantir esse direito, vamos antes levantar alguns pontos de reflexão.
Considerações sobre o acolhimento
Alguns usuários de Saúde Mental podem ser “chatos”, como, aliás, qualquer outra pessoa. Mas o trabalhador de Saúde tem de desenvolver um “jeito” de lidar com as “pessoas chatas”, sejam elas portadoras de sofrimento mental ou não. Um pouco de tolerância e um pouco de firmeza costumam resolver essas situações. O que não é correto é encaminhar estas pessoas para a Saúde Mental meramente como forma de passar o problema adiante.
A não ser que estejam em crise muito grave, os portadores de sofrimento mental são perfeitamente capazes de dizer o que querem – mesmo que, em alguns casos, seja preciso um pouco de paciência para entendê-los. Portanto, se alguém chega a um serviço de Saúde trazendo um problema psíquico, a primeira coisa a fazer é uma avaliação inicial do que se trata: é uma urgência? Um pedido de esclarecimento? Uma marcação de consulta? Uma receita? A partir daí, o usuário será ou não encaminhado à Saúde Mental, hoje, amanhã, ou daqui a um mês, conforme o resultado da avaliação feita. O que não podemos fazer é deixar de ouvir e de considerar sua demanda inicial, como se deve ouvir a de qualquer outro paciente.
O fato de que o usuário ou seu familiar chegue ao serviço solicitando atendimento na Saúde Mental não significa que essa seja a melhor opção para ele. Quando alguém traz uma queixa de “depressão”, ou mostra uma receita de medicação psiquiátrica, isto não quer dizer necessariamente que se trate de um portador de sofrimento mental: afinal, muitas pessoas que estão atravessando um momento difícil de suas vidas são equivocadamente diagnosticadas assim. Portanto, não só o acolhimento, mas também o acompanhamento dessas pessoas muitas vezes podem ser feito pelas equipes dos Programas de Saúde da Família.
Todos os trabalhadores de Saúde devem conhecer o modelo de assistência em Saúde Mental, e os serviços existentes no município: equipes de Saúde Mental nas unidades básicas, CAPS, Centros de Convivência, leitos em hospital geral, etc. Dessa forma, saberão para onde encaminhar o usuário, quando seu caso não puder receber o atendimento adequado no serviço de Saúde em que foi feito o acolhimento.
De maneira geral, não convém deixar o acolhimento dos portadores de sofrimento mental apenas a cargo da equipe de Saúde Mental, separando-o do acolhimento dos outros usuários. Contudo, deve-se ressaltar: a qualquer momento, o técnico de Saúde Mental pode e deve ser chamado para ajudar a esclarecer uma dúvida, definir um encaminhamento, participar de uma avaliação.
Naqueles casos em que o acolhimento conclui que o usuário deve ser realmente acompanhado pela equipe de Saúde Mental, há um cuidado importante a tomar: rejeitar o velho critério do agendamento conforme a fila por ordem de chegada. É preciso avaliar não só qual o atendimento necessário, mas, também, o grau e a premência desta necessidade: alguns devem ser atendidos imediatamente, outros podem esperar um dia, uma semana, um mês, conforme o caso. Assim, o trabalho se torna ágil, não gerando “filas de espera” ou agendas lotadas: consegue-se atender a todos, sem sobrecarga para a equipe, nem prejuízo para os usuários.
VÍNCULO E RESPONSABILIZAÇÃO DO CUIDADO
Assim como o acolhimento não pode reduzir-se apenas a uma administração mais ou menos eficiente da chegada das pessoas aos serviços, o vínculo e a responsabilização de cuidados não se confundem meramente com o conceito de adscrição de clientela.
A adscrição de clientela é um operador importante em saúde pública: define uma população, que habita determinada área de um território dado, estando sob a responsabilidade dos cuidados de uma determinada equipe de um serviço de Saúde. No entanto, importa, antes de tudo, definirmos qual a responsabilidade que está em jogo, quando assumimos esse cuidado.
Inicialmente, é preciso considerar bem a noção de território, ou seja: não apenas um espaço geográfico delimitado, mas toda uma diversidade de situações pessoais, familiares, sociais, muitas vezes atravessada por duras desigualdades: uma favela e um bairro de classe média, ainda que pertençam ao mesmo território, exigem atenção e cuidados diferenciados, de acordo com as dificuldades socioeconômicas, de acesso à cultura e ao lazer, de infra-estrutura sanitária, etc, que encontramos num e noutro. Para conhecer e considerar a diversidade, não bastam os mapas e as estatísticas: o território só adquire verdadeira realidade aos olhos dos trabalhadores de Saúde quando transitam por ele, em contato com suas ruas, seus espaços, seu cotidiano. Apenas assim se constatam os problemas e se descobrem as potêncialidades de uma região.
S e assim é no que diz respeito aos aspectos coletivos, assim deve ser também no cuidado prestado a cada um dos nossos pacientes. É fácil admitir que a gestante, a criança, o hipertenso, o portador de sofrimento mental, e assim por diante, beneficiam-se do contato constante com uma equipe de profissionais que já os conhece e os acompanha. Contudo, isto pouco valerá, se o contato paciente-profissional limita-se a verificar e a repetir condutas padronizadas.
Todo cuidado é uma espécie de artesanato: não pode ser feito em série. Trata-se de um laço singular que se tece um a um, sem exceção.
No que diz respeito aos portadores de sofrimento mental demonstra-se de forma muito clara a aplicação e a validade dos pontos destacados aqui. Diferentemente dos demais, esses pacientes muitas vezes não pedem ajuda, e até mesmo parecem recusá-la; contudo, ao contrário do que se pensa, são particularmente sensíveis ao vínculo e ao cuidado. Afinal, os problemas que os perturbam relacionam-se via de regra a um impasse na relação com outras pessoas – seja o chefe ou o marido, a mãe ou o vizinho. Portanto, esses problemas encontram alívio e saídas possíveis, quando podem endereçar-se a profissionais acolhedores em sua escuta, e a responsáveis por sua vinculação e acompanhamento.
Algumas considerações sobre o vínculo e a responsabilização de cuidados
Quando se cuida de alguém, cuida-se incondicionalmente. Assim como não se nega atendimento a um diabético porque não seguiu a dieta, não se pode deixar de atender a um alcoólatra porque ele não parou de beber; igualmente, não se dá “alta administrativa” a um paciente porque seu comportamento foi inadequado. Para cuidar das pessoas de trato mais difícil, é preciso criar estratégias, e não impor condições.
Quando um usuário age de forma que prejudica seu tratamento ou o tratamento dos outros, há muitas maneiras de dizer e de mostrar isto a ele; contudo, não existe maneira alguma de recusar cuidados que não resulte em abandono. Responsabilidade exige firmeza, mas não é sinônimo de rigidez: pelo contrário, quanto o trabalhador se mostra rígido, mais pretexto encontra para deixar de exercer funções que lhe cabem.
Se o vínculo e a responsabilização são laços que se fazem com cada um, eles adquirem firmeza crescente quando se entrelaçam uns aos outros. Assim se constrói a dimensão coletiva da solidariedade e da confiança na relação entre a equipe, os usuários e a comunidade.
A qualidade de certas atividades das unidades básicas, como os grupos de gestantes, diabéticos, etc, é muito diferente, dependendo desta relação. Quando é conduzido de forma autoritária, um grupo de hipertensos não passa de uma reunião aborrecida, da qual todos querem sair o mais depressa possível; quando é flexível, pode tornar-se um espaço agradável de troca de experiências e de informações.
Sobretudo, a dimensão coletiva da relação equipe – usuários não se faz apenas nestas atividades grupais de objetivo técnico: requer a participação efetiva dos usuários na avaliação e na acompanhamento do trabalho da equipe. As comissões locais de Saúde são um espaço importante para isto, mas muitos outros podem ser criados no cotidiano do serviço. Assembléias nos CAPS, reuniões no centro de saúde, comissões de usuários de Saúde Mental, são atividades de grande importância. Conhecendo o funcionamento do serviço, seus avanços e seus problemas, os usuários tornam-se não apenas pacientes, mas parceiros responsáveis da sua equipe.
A ATUAÇÃO EM EQUIPE
Não se pode definir uma equipe como um aglomerado de trabalhadores, na qual cada um deles exerce apenas a sua função profissional específica. As identidades profissionais não podem servir de pretexto para o apego burocrático a uma função. Se é verdade que compete ao médico prescrever, o que o impede de levar os usuários a um passeio? Se a psicóloga deve responder por atendimentos individuais, por que não pode coordenar uma oficina? Se for atribuição da enfermeira supervisionar o trabalho dos auxiliares de enfermagem, por que não pode escutar e acompanhar seus pacientes? Se o porteiro deve zelar pelos que entram e saem, não lhe cabe também fazer companhia a quem fica?
Também não podemos entender as equipes apenas como uma forma de dividir o trabalho, em que cada um faz “a sua parte”, sem necessitar preocupar-se com o produto total. Uma equipe de Saúde deve compor-se de profissionais de formações diferentes, assegurando assim a diversidade de suas feições e a troca de suas experiências. Naturalmente, as especificidades das diferentes profissões devem ser respeitadas. Contudo, o que caracteriza realmente o trabalho em equipe é a capacidade de participar coletivamente da construção de um projeto comum de trabalho, num processo de comunicação que propicie as trocas. Assim, não nos limitamos a aplicar conhecimentos técnicos, aliás, indispensáveis; aprendemos a atuar coletivamente, sem nos refugiarmos em interesses corporativos ou individuais.
Algumas considerações sobre o trabalho em equipe
Um aspecto importante do trabalho em equipe é a sua dimensão interdisciplinar. Saúde não é um conceito que se possa enunciar a partir de uma única disciplina; pelo contrário, é delineado a partir de conhecimentos da Biologia, das Ciências Humanas, da Epidemiologia, e outros. Portanto, trabalhar com saúde, na amplitude que o termo requer, traz a necessidade de examinar esse objeto a partir de diferentes conhecimentos e práticas – não apenas internos à equipe de Saúde, como os saberes da Enfermagem, da Psicologia, da Medicina, etc – mas também aqueles de outros campos.
Assim, a equipe não pode organizar-se em torno do saber de uma determinada categoria profissional. Na Saúde, tradicionalmente, este saber era aquele do médico: em torno dele, os outros profissionais tinham meramente um papel auxiliar. Contudo, nessa nova lógica de cuidados, nenhum saber ocupa o centro.
Isto se torna ainda mais evidente na Saúde Mental: a grande maioria das formas de sofrimento mental que atendemos não têm causa orgânica, nos mesmos moldes de um diabetes ou uma pneumonia. Assim, o próprio diagnóstico e a condução do tratamento podem ser feitos tanto pelo psicólogo, pelo médico, pelo terapeuta ocupacional – apenas a prescrição de medicamentos sendo atribuição exclusiva do médico.
Uma equipe mínima de Saúde Mental em unidade básica de Saúde deve compor-se pelo menos de um psicólogo e um psiquiatra – evidentemente, trabalhando em parceria com o generalista, o assistente social, o auxiliar de enfermagem, entre outros.
Serviços específicos de Saúde Mental, de maior complexidade técnica, como os CAPS, têm equipes de composição mais diversificada: psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, além, é claro, do pessoal de enfermagem e de apoio.
Seja nos serviços de Saúde ou nos serviços específicos da Saúde Mental, o trabalho em equipe não consiste apenas nessa troca de saberes e de experiências; é também um exercício de democratização da relação entre os trabalhadores, conferindo a todos eles, seja qual for sua formação profissional, direito de voz e de voto.
Isto não resulta apenas em idênticos direitos para todos, mas também em idêntico grau de responsabilidade – seja diante do usuário, seja diante do projeto de trabalho. Essa responsabilidade implica em participar tanto dos cuidados quanto das decisões – seja naquelas que dizem respeito ao cotidiano do serviço de Saúde, seja no que concerne à organização do trabalho, conforme os princípios definidos pelo Projeto de Saúde Mental de um município, região ou Estado.
Finalmente, cabe lembrar que uma equipe não trabalha para si mesma, e sim para atender, da melhor maneira possível, sua clientela!
2.4 A ORGANIZAÇÃO DO PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE MENTAL
A organização do processo de trabalho deve incorporar as noções básicas da dimensão cuidadora na produção de Saúde que examinamos até aqui. Deve ainda, no que diz respeito à Saúde Mental, organizar-se segundo os princípios da Reforma Psiquiátrica que buscamos, vistos no capítulo anterior. Esses princípios não são adendos ao projeto clínico, e sim partes constitutivas do mesmo, que devem estar inseridas nas ações concretas planejadas e desenvolvidas pelos profissionais.
Os primeiros passos do processo de trabalho: a chegada do paciente ao serviço de Saúde
O acolhimento, quando na unidade básica, pode ser feito por qualquer profissional de saúde, de preferência um técnico de nível superior. Nos CAPS, que atendem casos de maior complexidade, é sempre feito por um profissional de Saúde Mental.
Após a primeira abordagem, o técnico que acolheu poderá necessitar do apoio imediato de um outro profissional, ou tomar ele próprio as primeiras decisões quanto às condutas a serem adotadas
De qualquer forma, há algumas questões que devem ser avaliadas nesta etapa. A primeira delas: independentemente do diagnóstico, este usuário apresenta problemas psíquicos cuja gravidade justifica um encaminhamento para a Saúde Mental? Naturalmente, o diagnóstico deve ser levado em conta: neuroses e psicoses graves são a clientela prioritária. Contudo, considera-se também a situação e as circunstâncias: por exemplo, o forte abalo emocional após uma perda ou situação de vida muito difícil pode requerer atendimento da Saúde Mental, mesmo em se tratando de uma pessoa mais tranqüila; da mesma forma, alguém que passou por um episódio psicótico grave, porém se encontra clinicamente estável, e mantém laços sociofamiliares bem estabelecidos, pode ser acompanhado pela equipe do PSF.
O profissional que fez o acolhimento pode a qualquer momento recorrer a um colega para discutir o caso: por exemplo, o enfermeiro pode discutir com o psiquiatra se há ou não necessidade de medicação; o generalista pode discutir com a psicóloga se há ou não indicação para o tratamento específico em Saúde Mental.
Caso se decida pelo encaminhamento à Saúde Mental, seguem-se os próximos passos.
Encaminhamento do paciente à Saúde Mental: próximos passos
É preciso, inicialmente, avaliar qual a premência desse atendimento: Imediatamente? Dentro de alguns dias ou semanas? E, ainda: em qual serviço o atendimento deve ser feito: na unidade básica, no CAPS? Esse segundo ponto, naturalmente, depende não só das características do caso, mas dos recursos com que conta o município.
Avaliou-se, pois, quando e onde o usuário deve ser atendido. O próximo passo é encaminhá-lo para a equipe de Saúde Mental que o irá acompanhar. Esse encaminhamento deve ser feito, sempre que possível, por meio de contato pessoal ou de telefonema; além disso, é sempre necessário um relatório especificando por que e para quando se solicita o atendimento.
Chegando à equipe de Saúde Mental, esteja ela na unidade básica, no CAPS, no ambulatório especializado, etc, o paciente será atendido por um profissional de nível superior desta equipe. Independentemente de sua formação – psicólogo, psiquiatra, assistente social, etc – este será o técnico de referência8 do paciente.
8 A expressão “técnico de referência”, utilizada em muitos CAPS, parece adequada para denominar o profissional que exerce as atribuições definidas neste parágrafo; portanto, será utilizada nesse sentido nessa Linha-Guia. A função do técnico de referência será mais bem especificada em 8.2 O projeto terapeûtico: a direção do tratamento.
É da alçada do técnico de referência estabelecer e sustentar o vínculo com o paciente, traçar as linhas de seu projeto terapêutico individual, definir com ele a freqüência dos atendimentos e do comparecimento ao serviço, fazer os contatos com a família, e com outras pessoas do seu espaço social, sempre quando necessário.
Os recursos terapêuticos indicados pelo técnico de referência podem também ser disponibilizados por meio de outros profissionais, como: prescrição médica para o uso de medicamentos, oficinas de arte conduzidas por agentes culturais, etc. Pode ainda haver dificuldades que requerem uma discussão de caso com os colegas da equipe ou a supervisão de um técnico mais experiente. O importante é que esses recursos não sejam utilizados de forma isolada, e sim façam parte do projeto terapêutico conduzido pelo técnico de referência, contribuindo assim para a melhora do usuário.
Num determinado momento do tratamento, pode ser necessária a transferência do usuário para um serviço mais adequado ao seu caso: por exemplo, um paciente até então acompanhado na unidade básica entra em uma crise que requer cuidados intensivos no CAPS; ou, pelo contrário, um outro, seguido no CAPS, já se encontra em condições de ser atendido na unidade básica. Também nesses casos, o encaminhamento deve ser feito de forma verbal ou por escrito, evitando a perda dos avanços obtidos até então.
Não se deve perder de vista que o paciente em atendimento pela equipe de Saúde Mental, seja no CAPS ou na unidade básica freqüentemente se beneficia da utilização simultânea de um outro tipo de equipamento, ou da realização de atividades que o ajudem na reabilitação psicossocial. Por exemplo, freqüentar um Centro de Convivência, participar de um Núcleo de Produção Solidária, atuar numa Associação de Usuários e de Familiares de Saúde Mental, e assim por diante. A equipe de Saúde Mental, portanto, deve reconhecer a importância desses recursos, promovendo sua criação e incentivando os usuários a procurá-los.
A CIDADANIA
Pode-se perguntar: mas, afinal, por que o tema da cidadania está incluído num capítulo que trata da dimensão cuidadora da saúde? Ou seja, por que o incluímos na dimensão clínica do nosso trabalho?
Ora, aí se encontra, justamente, uma questão capital: a clínica, tal como é concebida aqui, não se desvincula da política, nem tem com ela uma relação apenas exterior. Política e subjetividade são aspectos estreitamente ligados – e talvez se possa atribuir à incompreensão dessa ligação o insucesso de muitas tentativas de Reformas Sanitária e Psiquiátrica.
É impossível, afinal, tratar um sujeito como tal, se não o consideramos como um cidadão; igualmente, o reconhecimento de sua cidadania não pode ser feito quando desconhecemos as questões subjetivas que lhe são próprias.
Ora, segundo a própria concepção de Saúde que conseguiu fazer-se valer na Constituição Brasileira, o direito à moradia, ao trabalho, à cultura, enfim a condições dignas de vida, são tanto condições quanto objetivos do cuidado em Saúde. Isto não quer dizer que os serviços de Saúde devem oferecer casa, emprego e lazer para todos – e sim, que a consideração desses aspectos é indispensável, por meio do trabalho intersetorial de políticas públicas.
Porém, antes de tudo, é preciso refletir sobre o que entendemos por direitos de um ser humano e cidadão.
Algumas considerações sobre os direitos de cidadania do portador de sofrimento mental
Quando se afirma um direito, afirma-se um princípio que entendemos ser justo. Isto não quer dizer que existam instâncias prontas para assegurá-lo: a afirmação de um direito não é jamais uma garantia, e sim uma conquista. Existem leis que preconizam direitos, instâncias e órgãos públicos para assegurar seu cumprimento. Contudo, essas leis, instâncias e órgãos são, por sua vez, objetos de uma conquista social, a ser permanentemente acompanhados e fortalecidos.
Direitos fundamentais, como morar, trabalhar, etc, não bastam por si mesmos, e nem serão jamais conquistados, se não se fazem valer outros, igualmente fundamentais: pronunciar-se, participar, escolher, responsabilizar-se. A posição passiva de receber benefícios pode ajudar a sobrevivência de um ser humano, mas não faz avançar sua vida. Cidadania é algo que só se exerce quando se partilha a palavra e se tomam decisões – encontrando para as questões que afetam a cada um seu registro na cultura.
O reconhecimento da cidadania do usuário do serviço de Saúde só se dá quando o tratamos verdadeiramente em pé de igualdade. Não vale, aqui, uma certa polidez impregnada de superioridade, com os quais muitas pessoas tratam aquelas de classes sociais que lhes são “inferiores”. Trata -se de reconhecer em quem apela, seja quem for, um meu igual, a justo título e de pleno direito – lembrando quão injustamente desiguais são muitas vezes as nossas situações.
Quando se trata da cidadania dos portadores de sofrimento mental, as questões são as mesmas levantadas acima. Basta apenas lembrar que estas pessoas foram privadas de seus direitos de uma forma particularmente brutal. Um pobre, na rua ou na favela, pode ainda tentar defender-se de muitas maneiras, adequadas ou não: pode esmolar, gritar, roubar...Contudo, um portador de sofrimento mental, internado num manicômio, não tem sequer essas tristes alternativas: está privado de qualquer chance de fazer-se ouvir.
O sofrimento mental traz questões que devem ser consideradas pela sociedade, na forma pela qual se pensa o conceito mesmo de cidadania. Afinal, “fazer caber” na cultura estas pessoas diferentes que escutam vozes, têm visões ou deliram, não consiste em adaptá-las aos nossos padrões. Pelo contrário, leva-nos a reexaminar esses padrões mesmos. Ao desconhecer a diferença crucial que a loucura nos coloca, sofremos todos – por não conseguir fazer reconhecer aquilo que em cada um de nós é diferente, singular e único.
O exercício da cidadania é indissociável da participação política e social. Como vimos, os movimentos de Reforma Psiquiátrica surgem sempre no bojo de mobilizações sociais mais amplas. Assim, por mais que se desacredite da prática política no mundo contemporâneo, não há outra saída: sem intervir nas relações de poder que estabelecem a constituição dos saberes, as condições de trabalho, as relações sociais, é inútil usar palavras como “direitos” e “cidadania”.
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