Às vezes - o destino não se esquece -
as grades estão abertas,
as almas estão despertas:
às vezes,
quando quanda,
quando à hora,
quando os deuses,
de repente
- entes -
a gente
se encontra.
(Guimarães Rosa)
Os transtornos mentais constituem um universo de sofrimento que muitos evitam olhar porque espelham os medos, a ignorância e os limites humanos. As pessoas que sofrem de transtornos mentais graves nos incomodam com seu sofrimento e as pessoas diagnosticadas com esquizofrenia representam um dos grupos que recebe maior carga de julgamento e rejeição social. Sabemos, pois muito já foi escrito, das razões históricas, econômicas, sociais, psicológicas e políticas do estigma associado aos transtornos mentais. Conhecemos, categorizamos e explicamos tal fenômeno. No entanto, seguimos estigmatizando e excluindo.
Sintomas como delírios e alucinações desafiam o senso comum e a nossa crença numa realidade única e evidente, compartilhada por todos. Além disso, o doente freqüentemente apresenta comportamentos sociais inadequados e atitudes bizarras que não são usualmente compreendidas e toleradas. As pessoas que sofrem desse transtorno permanecem marginalmente incluídas ou francamente excluídas dos cenários cotidianos e de ambientes sociais e de trabalho – e desta forma, não nos incomodam.
Como é a experiência do lado de quem sofre?
Muitas pessoas que têm esquizofrenia nunca chegam a ser diagnosticadas ou tratadas. Vivem discretamente recolhidas em seu mundo, apenas pedindo para não serem perturbadas. Há os que habitam as ruas, os nossos “loucos de rua”, e há aqueles que se tornam “pacientes psiquiátricos”, passando a fazer parte de um sistema de tratamento que tenta responder às demandas clínicas, sociais e legais, sem, entretanto possuir recursos suficientes para tal.
Muitos, ainda que seguindo algum tratamento, não se sentem propriamente doentes. Atribuem os problemas decorrentes dos sintomas a causas externas, interpretando aquilo que vivem, por exemplo, como uma experiência mística ou grandiosa. Para alguns, a dúvida entre perceber e aceitar a doença e sentir que são dotados de poderes especiais ou divinos nunca se desfaz. A questão de como conviver com a experiência de sentir (ou ter sentido, em algum momento) o mundo e a realidade de forma tão diferente é um desafio que se impõe a quem já passou por esta experiência. De qualquer modo, essas vivências contribuem para gerar dificuldades nas relações, podem criar obstáculos para a convivência familiar e social e freqüentemente constituem barreiras para a participação em atividades e tarefas de estudo, trabalho e reuniões sociais.
Por outro lado, aqueles que, em função da evolução mais favorável da doença e/ou melhores condições de tratamento podem conscientizar-se das dificuldades e limitações e com o tempo desenvolver estratégias paras lidar com elas, vão enfrentar enormes desafios ao procurarem manter-se social ou profissionalmente ativos. Não revelar a doença, por exemplo, é freqüentemente uma estratégia imprescindível para que se conquiste aceitação em determinados ambientes. Es sa atitude, entretanto, gera sobrecarga e aumenta a desvantagem destas pessoas que, em função de sua doença, geralmente enfrentam com dificuldade as pressões “normais” de determinadas demandas de trabalho, de estudo ou mesmo sociais. A falta de sistemas de apoio ou de esquemas alternativos e flexíveis, que acomodem suas necessidades especiais só faz aumentar a solidão e contribui r para um provável fracasso em suas tentativas. Com isso, não é difícil entender porque tantos portadores de esquizofrenia recolhem-se em seu canto e cultivam o isolamento como estratégia de sobrevivência.
Os familiares que convivem com o doente também vivem estas dificuldades. É difícil entender inicialmente o que se passa com o “doente” e a busca de tratamento é penosa. Em geral, este não acha que necessita ser tratado; os vizinhos pensam que deve ser possessão e sugerem um tratamento espiritual; outros dizem que é caso de polícia, porque o sujeito está, de fato, “alterado”: cismou que o estão perseguindo, ficou agressivo e quebrou tudo, criando confusão com todo mundo... E, quando finalmente alguém toma a iniciativa de levar a pessoa a um médico ou chamar o serviço de resgate, esse atendimento traz algum alívio para a crise instalada, mas não ajuda a coordenar os próximos passos de uma longa jornada.
- “Isso é estresse, vai passar”, “tome esses remédios e volte daqui a um mês...”, “está deprimido, mas vai melhorar...” são respostas freqüentes às perguntas aflitas de familiares perplexos diante da experiência do surto psicótico. A quem recorrer? Quem pode ajudá-los a entender o que se passa e a encontrar caminhos para conviver com uma doença que afeta tão profundamente a vida de todos na família?
Na esfera do tratamento, a falta de informações adequadas não ajuda os pacientes e familiares a desenvolverem estratégias para lidar com as dificuldades no cotidiano e reproduz a discriminação fundada na crença de que “não adianta explicar, eles não entendem...”. Por muito tempo, profissionais atribuíram o sofrimento de seus pacientes ao desequilíbrio ou à falta de estrutura familiar saudável, ancorados no conceito de que a família seria em grande parte responsável pela doença. As teorias que postularam ser a esquizofrenia uma doença resultante de relações familiares doentias (mais especificamente mãe-filho), embora nunca confirmadas, contribuíram para perpetuar as dificuldades de relação entre profissionais e familiares e geraram barreiras de comunicação que até hoje impedem a criação de estratégias de colaboração no contexto de tratamento.
Na população em geral, prevalece o total desconhecimento ou a noção de que o “esquizofrênico” é perigoso, violento, ou preguiçoso, alguém em quem não se pode confiar. Com isso, os portadores de esquizofrenia enfrentam todo tipo de dificuldade para conseguir voltar (ou começar) a trabalhar, para reatar relacionamentos e recuperar a esperança de levar uma vida digna.
Contribuem para aumentar esse estigma também a representação do doente mental como vilão nas novelas e filmes de ficção e o apreço sensacionalista da mídia por notícias de atos violentos, freqüente e levianamente associados à esquizofrenia. Além disso, nas redações de revistas e jornais de grande circulação, “esquizofrênico” é um adjetivo comumente empregado para descrever pessoas, contextos e condições em que p redominam ambivalência, confusão, divisão ou incoerência. Uma prática infeliz, que só colabora para aumentar a desinformação sobre a doença, alimentando, na população, a associação entre rótulos negativos e esquizofrenia.
Assim, a desinformação sobre a esquizofrenia segue contribuindo para perpetuar, em todos os níveisde relações sociais, incluindo-se aí as relações entre pacientes e profissionais de saúde mental, os mitos sobre a doença que afetam negativamente o tratamento e as oportunidades de integração social destas pessoas.
O principal combustível do estigma é a desinformação; seu maior dano, a desvantagem social.
A desvantagem social é, sem dúvida, o preço maior pago pelo estigma da esquizofrenia. Do ponto de vista de quem sofre, a desvantagem começa pela falta de tratamento adequado. Em muitos casos, pacientes levam anos até encontrar um local que ofereça assistência adequada, onde a medicação prescrita seja corretamente orientada, em que o paciente e seus familiares recebam informações e sejam acolhidos em suas questões e conflitos. Poucos são os serviços que oferecem abordagens terapêuticas que efetivamente possam auxiliar essas pessoas a desenvolver recursos para retornar ao convívio social. Sabemos que tratamentos menos efetivos produzem resultados menos positivos. Estes pacientes, inadequadamente tratados, seguem julgados improdutivos, preguiçosos, irresponsáveis e vão confirmando, desta maneira, o mito de que não há tratamento eficaz para a esquizofrenia.
Mas o estigma da esquizofrenia não afeta apenas as pessoas que sofrem deste transtorno e seus familiares. A discriminação e o preconceito estendem-se e envolvem os profissionais e os serviços de tratamento psiquiátrico . Nessa esfera o estigma aparece, por exemplo, através da desvalorização social do trabalhador de saúde mental, na falta de investimentos públicos em políticas e serviços efetivos de saúde mental. Os profissionais são mal preparados, mal remunerados e pouco reconhecidos. As instituições e os serviços, precariamente equipados. Os profissionais responsáveis pelo cuidado direto dos pacientes no sistema hospitalar, nos serviços de pronto-atendimento ou hospitais-dia são, em geral, aqueles que receberam menos treinamento e acesso a informações. Atendentes e auxiliares de enfermagem, por exemplo, encontram-se diariamente frente a situações de crise, cuidando de pacientes agitados, agressivos e confusos. Que orientação ou suporte institucional recebem para desempenhar o seu trabalho? Essas pessoas nem sempre estão num serviço psiquiátrico por opção; o seu despreparo e falta de motivação revelam também, o desinteresse e o desinvestimento que envolve o sistema psiquiátrico, contribuindo para perpetuar o círculo vicioso da estigmatização.
REFERÊNCIAS
Sartorius, N. One of the last obstacles to better mental health care: the stigma of mental illness. Em: Guimón J, Fischer W, Sartorius N (eds): The Image of Madness. The Public Facing Mental Illness and Psychiatric Treatment. Basel, Karger,1999, pp 96-104.
Terapeuta Ocupacional e Terapeuta de Família. Membro do Setor Multiplicadores Reflexivos.Coordenadora do Projeto S.O.eSq. no Brasil
www.soesq.org.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário