Martha A. Traverso-Yépez
Verônica de Souza Pinheiro
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
INTRODUÇÃO
A partir de uma visão unidimensional da saúde, a tendência das instituições sociais tem sido garantir a sobrevivência de crianças e adolescentes, cuidando dos denominados problemas orgânicos, desconsiderando os aspectos psicológicos e sócio-ambientais. Tal situação limita a consolidação de projetos de vida que transcendam a inserção no mercado informal de trabalho e o desempenho dos tradicionais papéis sexuais, gerando um ciclo de reprodução da pobreza que tende a se perpetuar. No presente texto, objetiva-se esclarecer os alicerces teóricos conceituais dos quais partimos, viabilizando o debate e a reflexão não apenas sobre a problemática em si, mas sobre as práticas profissionais daqueles que trabalham cotidianamente nesses contextos sociais. A partir de uma visão unidimensional da saúde, a tendência das instituições sociais tem sido garantir a sobrevivência de crianças e adolescentes, cuidando dos denominados problemas orgânicos. Tendem a serem desconsideradas as outras dimensões da saúde, tanto psicológica quanto sócio-ambiental (Traverso, 2001). Quais estão se partindo para o desenvolvimento desse trabalho, de forma a manter uma permanente reflexão crítica das idéias e valores que permeiam a vivência da adolescência entre a população alvo e suas famílias, bem como as práticas dos profissionais de educação e saúde com atuação no bairro. Nesse sentido, há uma preocupação não apenas com a problemática em si, comum nos contextos de dependência econômica e desigualdade estrutural em toda América Latina, mas com as práticas e intervenções dos profissionais que laboram quotidianamente nesse contexto, inclusive a equipe da Universidade, que participa desse trabalho.
O CONTEXTO SÓCIO-ECONÔMICO
Felipe Camarão é um típico bairro de periferia, como há em qualquer cidade de tamanho médio no Brasil. Através de trabalhos prévios, observou-se o alto nível de vulnerabilidade dos adolescentes do bairro, expostos a um contexto social perpassado pela precariedade de serviços de infra-estrutura, alto índice de evasão escolar, relações familiares fortemente marcadas pela hierarquia de gênero e de geração, e pela ausência, para ambos os sexos, de perspectivas e oportunidades acadêmicas e profissionais (Pinheiro, 2001). Esta situação, caracterizada pela violação dos direitos legalmente assegurados a crianças e adolescentes brasileiros há mais de dez anos, limita a consolidação de projetos de vida que transcendam os tradicionais papéis sexuais e a inserção no mercado informal de trabalho, gerando um ciclo de reprodução da pobreza e a potencializarão dos riscos aos quais esse segmento populacional encontrasse exposto, particularmente os decorrentes das diferentes formas de violência e exclusão social, com restrito acesso aos recursos materiais ou simbólicos necessários ao seu pleno desenvolvimento.
Apesar da constante insistência na necessidade de reformas institucionais voltadas para questões como o trabalho escravo, a violência contra crianças e adolescentes, o aumento no número de meninos e meninas em situação de rua, a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, a discriminação racial e de gênero, ou a ampliação do mercado de drogas (Abramovay, Castro, Pinheiro, Lima & Martinelli, 2002), percebe-se que a estrutura de desigualdades e injustiças vigente ainda é mais forte, resultando na permanente reprodução dos mecanismos da violência. Parte-se de uma concepção sócio-histórica do ser humano, na qual este é produto e produtor de sua história, sempre segundo as possibilidades e limitações do contexto sócio-cultural do qual faz parte. É de destacar, por exemplo, que as instituições sociais, governamentais ou não, presentes no bairro em questão, tendem a, inadvertidamente, reforçar modelos de interação reprodutora da violência simbólica (Bourdieu, 2000), cuja existência parece passar despercebida aos atores sociais implicados.
As propostas, formuladas à margem de uma reflexão sobre o contexto econômico e sócio-cultural específico do bairro, não viabilizam o diálogo e/ou contribuem no condicionamento dos tradicionais papéis de submissão e conformismo presentes nesse contexto. Vezes tornam-se depositários de problemas e conflitos, aos quais não têm possibilidades de responder adequadamente. Desinformados a respeito de sua condição de cidadãos, são facilmente desrespeitados em seus direitos, mesmo os mais elementares, tornando-se, também eles, reprodutores da violência de que são vítimas.
DE QUE ADOLESCENTES FALAMOS?
Etimologicamente o termo adolescência vem do verbo latino “adolescere” (ad = para e olescere = crescer), estando implícito neste a condição ou processo de crescimento, apontando para as mudanças que começariam com o início da puberdade e terminariam quando as responsabilidades adultas fossem assumidas. A adolescência “começa na biologia e termina na cultura”. É evidente na literatura psicológica e sociológica, a tendência a falarem de adolescência como uma categoria descontextualizada, seja como uma fase do desenvolvimento – etapa da vida – que, portanto, remete à biologia e a estados do corpo, ou bem como categoria sócio-demográfica que remete a parâmetros etários. A Organização Mundial de Saúde define adolescência como a fase do desenvolvimento compreendida entre os 10 e os 19 anos, critério adotado, no Brasil, pelo Ministério da Saúde e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não se pode esquecer que foi sob o enfoque da intervenção e do controle, da valorização da norma e segregação do desvio que emergiu a Psicologia do Desenvolvimento ao final do século XIX e foi neste contexto que,
posteriormente, consolidou-se a concepção corrente de adolescência.
Deste modo, é a partir dos condicionantes de finais do século XIX e inícios do XX, que se passa a identificar essa fase como um período de transição entre a infância e a idade adulta, sendo constituída como um período
específico, com uma psicologia e uma sociologia próprias. O autor, fazendo referência à juventude, afirma que esta alude à identidade social dos sujeitos envolvidos e como tal, não apenas identifica, mas considerando que toda identidade é relacional, refere sempre a sistemas de relações articuladas nos diferentes marcos institucionais e práticas sociais. Estas considerações indicam que devemos falar de adolescências (no plural), sendo que a caracterização de cada uma em particular, como já foi colocado, depende de variáveis sócio-demográficas tais como gênero, classe social e contexto histórico-cultural.
VISÃO UNIDIMENSIONAL DE SAÚDE X SAÚDE MULTIDIMENSIONAL
A existência da saúde não é apenas uma questão orgânica, dependendo da interação permanente das dimensões biológicas, psicológicas e sócio-ambientais numa dinâmica de extrema complexidade. Garantindo apenas a sobrevivência, não se atende às múltiplas dimensões humanas e o grande problema é que crianças e adolescentes ficam órfãos do atendimento abrangente de que precisam, estando expostos a outro tipo de mazelas. Nas etapas iniciais da vida, talvez mais que em qualquer outra, faz-se evidente a necessidade de se considerar a saúde integral e não apenas os aspectos orgânicos. No caso da adolescência, os programas de intervenção destinados a essa faixa etária tendem a focalizar sua atenção apenas para a saúde reprodutiva, negligenciando a preocupação com o caráter multifacetado da saúde humana.
RISCO X VULNERABILIDADE
O termo risco refere-se a possibilidades de perigo, a probabilidades mais ou menos previsíveis de perda ou ganho, a evento que acarreta o pagamento da indenização, bem como a possibilidade de perda ou de responsabilidade pelo dano. Spink (2000) aponta os múltiplos usos do termo risco em diferentes setores da vida social. No campo da saúde é um conceito chave da Epidemiologia, mas problemático pela tendência a migrar do nível macro do contexto sócio-demográfico para o nível micro dos comportamentos. Como a autora destaca, cada sociedade define o que vem a ser risco, fazendo referência a aspectos objetivos, mas sempre perpassado pela subjetividade. Interessa, desse modo, saber como a sociedade “vê quem corre risco: como vítima de uma fatalidade; como sujeito de uma vulnerabilidade orgânica ou socialmente definida; ou como portador de racionalidade e capaz, portanto, de analisar o que é risco e definir possibilidades de ação”. Nos últimos anos, o termo vulnerabilidade vem sendo cada vez mais usado nas reflexões sobre a pobreza na América Latina, e sobre os limitados resultados das políticas públicas para combater o problema e seus nefastos efeitos colaterais. Como fora já apontado no item anterior, o conceito deixa em evidência a preocupação com o contexto “macro”, apontando os efeitos das desigualdades estruturais e as “configurações” de “debilidades ou desvantagens para o desempenho ou mobilidade social dos atores”. Nem sempre restritas àqueles situados abaixo da linha de pobreza, mas que termina implicando de uma ou outra forma a toda a sociedade. Defende-se a vulnerabilidade como sendo, além de dinâmica e mutante, uma categoria operativa que considera não apenas a posse limitada de bens materiais (que influenciam de fato o grau de vulnerabilidade), mas antes, tenta fazer uma avaliação mais abrangente dos aspectos negativos, bem como dos positivos, incluindo características, recursos, habilidades e estratégias, individuais, grupais e sociais, para lidar com o sistema de oportunidades oferecido pela sociedade.
Assim, a conformação de situações de vulnerabilidade implica, necessariamente, a interação dinâmica entre objetividade e subjetividades, entre o contexto e as pessoas nele inseridas. Embora se fale que a adolescência inicia a partir da puberdade, por volta dos 10 anos de vida, tanto o desenvolvimento biológico, quanto o psicológico e social vão depender do contexto sócio-cultural no qual se insere a família desse adolescente, delineando possibilidades e limitações mesmo antes do momento da sua fecundação. A qualidade do desenvolvimento nos primeiros anos de vida vai também influenciar a qualidade de vida da adolescência, portanto, segundo Burak,
A promoção do desenvolvimento humano, da saúde e dos
fatores protetores do crescimento e desenvolvimento, bem
como a prevenção, durante a etapa fetal e a infância, contribuem para uma adolescência mais sadia e essas mesmas ações durante a adolescência contribuiriam para uma maturidade mais saudável (Burak, 2001, p.470-1).
A preocupação em satisfazer essas necessidades deve ser o objetivo dos programas denominados de saúde integral do adolescente. Contudo, o que se observa na prática é a tendência a ver os problemas isolados do seu contexto social, seja a gravidez na adolescência, as doenças sexualmente transmissíveis (DST), a violência ou a dependência química, resultando na implementação de programas verticais e isolados para cada um dos problemas. As demandas mostram-se especialmente significativas em contextos de precariedade psicossocial nos quais as privações materiais, aliadas a um estado de anomia social, resultam em relações interpessoais marcadas pela violência, da qual cada um torna-se vítima e reprodutor. Nesse contexto, as condições de sobrevivência e convívio tendem a ser particularmente desfavoráveis, resultando em constantes e variadas formas de violação de direitos dos quais, via de regra, os sujeitos não têm sequer conhecimento. Assim, conceitos como cidadania, ética ou reciprocidade mostram-se excessivamente abstratos para pautar as relações entre esses agentes sociais.
NECESSIDADE DE ESPAÇOS E CONTEXTOS DE RESSIGNIFICAÇÃO
Considerada a complexidade dos problemas acima citados, acreditasse que reformas radicais que impliquem em mudanças estruturais fazem parte de um processo que não é fácil, por demandar vontade política e participação cidadã em grande escala. Contudo, é possível trabalhar para desenvolver o alicerce humano que possibilite essas mudanças e para isso precisamos esclarecer a concepção de sujeito da qual partimos. Nesta perspectiva, é na interação com outros (e o mundo a sua volta), mediada pela linguagem, que cada pessoa cria e recria sua subjetividade, pela internalização da objetividade, do mundo compartilhado ao qual cada um atribuiria sentidos pessoais. Assim, constituída a partir de uma construção pessoal sobre a objetividade internalizada, a subjetividade de cada um expressa-se e recriam-se cotidianamente nas práticas sociais, incluídas as discursivas, perpassadas pelas diversas linguagens ou símbolos, verbais e não verbais, que sintetizam e dão sentidos a essas práticas. Isto, obviamente, sempre dentro dos limites das vivências de cada um em seus processos de socialização, dos repertórios discursivos com que conta e das possibilidades de enunciados, refletindo o contexto de vida de cada pessoa e os diversos interlocutores com os quais tenha se deparado. Pinheiro (2001), defende que seria na interface de quatro tempos que dar-se-ia a configuração desse contexto discursivo/simbólico. Assim, um tempo longo, marcado pelos conteúdos culturais oriundos da história social; um tempo vivido, definido pelo processo de socialização de cada indivíduo; um tempo curto, próprio dos processos dialógicos, do contexto mesmo da interação; e um tempo prospectivo, baseado nos outros três tempos, e marcado por antecipações, projetos, motivações e desejos; imbricar-se-íam na configuração dos repertórios discursivos próprios a cada pessoa, delimitando os enunciados possíveis a cada uma. Aliada a uma permanente reflexão e auto-crítica em relação aos posicionamentos e atuação profissional, objetiva-se promover interações que possibilitem aos adolescentes o acesso a variadas linguagens, formas diversificadas de expressão, viabilizando um rico processo de auto descoberta e revisão criativa do auto-conceito, de encontro com as próprias habilidades, potencialidades e limitações. Como já foi colocado, a superação efetiva dos problemas desses e de tantos outros jovens, vítimas de um sistema que, repetidamente, negar lhes o direito a uma existência digna, supõe profundas mudanças estruturais nas sociedades contemporâneas. Por outro lado, entendemos que a intervenção proposta restringe-se ao caráter de facilitação, sendo impossível garantir a ocorrência dos processos de ressignificação que supomos importantes às mudanças que buscamos promover junto a estes adolescentes. Entretanto, não podemos por isso deixar de ofertar-lhes oportunidades, furtando-nos ao compromisso de contribuir com o que nos é possível ou viável.